Além da Pele

Medicina não é um sacerdócio: é uma profissão — e tudo bem com isso.

Por que precisamos parar de romantizar a carreira médica e entender que o valor de um profissional não está atrelado a um jaleco branco.


Medicina não é um sacerdócio: é uma profissão — e tudo bem com isso.

Por muitos anos, a sociedade colocou os médicos em pedestais, como figuras quase angelicais. Não são raros os discursos que associam a medicina a uma missão divina ou a um sacerdócio, como se o simples fato de sermos médicos nos tornasse seres superiores, obrigados a doar tempo, energia e até vida — muitas vezes sem questionar o custo disso. Mas eu nunca acreditei nessa ideia. E cada vez mais percebo o quanto essa narrativa é danosa.


Medicina, para mim, é uma profissão. Uma escolha racional, pautada em vocação, sim, mas também em pragmatismo, estratégia e, sobretudo, trabalho. Assim como o advogado cumpre jornada e cobra por hora, como o professor é remunerado de acordo com suas aulas, o médico também deveria ser valorizado como um trabalhador qualificado — não como um mártir da saúde pública.


Não estou aqui para negar a beleza da medicina. Ela transforma vidas, salva famílias, devolve dignidade. Mas colocar o médico em um lugar de santificação desumaniza. Cria uma expectativa irreal de abnegação, como se fosse imoral desejar uma vida confortável, como se fosse vergonhoso buscar melhores condições de trabalho, como se falar de dinheiro fosse um pecado.


A verdade é que medicina saturou. Os números não mentem: há dez anos, um médico ganhava em média R$36 mil. Hoje, ganha menos — R$32 mil — mesmo com uma inflação de quase 90%. Para manter o mesmo padrão de vida daquela época, esse profissional precisaria ganhar cerca de R$75 mil. Isso não é ganância; é matemática.


Durante a infância, eu sonhava em ser juíza. Amava direito, comunicação, as palavras. Achava que minha vocação estava nas humanas. E mesmo hoje, sendo médica, palestrante, empreendedora, eu me permito ser múltipla. Porque nós, seres humanos, não fomos feitos para viver em caixas. Nada me impede de ser excelente em diferentes áreas. Não é o CRM que me define.


Aliás, vejo muitos colegas se apresentarem com um orgulho quase teatral do “Doutor” antes do nome. Como se essa titulação fosse seu sobrenome. E não raro, percebo que, ao tirar esse título, esse jaleco, o carimbo, o CRM — não sobra nada. A identidade de muitos se resume à profissão. São escravos do próprio trabalho. Quando eu compreendi que eu não sou médica — eu estou médica —, algo dentro de mim se libertou. Descobri que minha essência não depende de uma formação. E que isso não diminui em nada a minha competência, mas amplia minha humanidade.


Se um dia eu decidir que marketing digital, inteligência artificial ou qualquer outra área me trará mais leveza, liberdade ou propósito do que a medicina, por que não seguir esse novo caminho? Seria traição? Egoísmo? Falta de gratidão? Ou apenas maturidade?


O mundo está mudando. As profissões também. E quanto antes aceitarmos que nossa identidade vai além da nossa formação, mais livres nos tornamos. Livres para escolher. Livres para mudar. Livres para dizer, sem culpa, que medicina é profissão, não missão divina. E que está tudo bem com isso.



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